Introdução
por Miguel Ratton*
De alguns anos para cá, tem havido um interesse crescente nos antigos sintetizadores analógicos. Muitos músicos (re)descobriram as sonoridades dos velhos synths, e estão querendo produzi-las diretamente da fonte, e não por samples e simulações digitais. Tenho percebido isso principalmente nos produtores de música eletrônica.
A realidade é que essa redescoberta criou uma movimentação significativa no mercado de sintetizadores, tanto na direção aos instrumentos antigos quanto na produção de novos instrumentos baseados na “velha” tecnologia. Nos últimos anos, surgiram empresas pequenas oferecendo sintetizadores analógicos, modulares ou não, mas também os grandes fabricantes mundiais, como Korg, Roland e Yamaha, estão desencavando (no bom sentido) projetos de mais de trinta anos e relançando-os no mercado. Isso sem falar de alguns projetistas das décadas de 1970/80, como Dave Smith, Roger Linn e Tom Oberheim, que voltaram à atividade com uma disposição de fazer inveja a qualquer jovem entusiasta dos sintetizadores. E não poderíamos deixar de mencionar os sintetizadores analógicos modulares produzidos atualmente em nosso país por Vinícius Brazil (VBrazil Systems, RJ) e por Paulo Santos (Electronic Music Works, SP), assim como os instrumentos artesanais de Arthur Joly (SP).
Essa fase nostálgica tem um pouco de cult, mas também tem muito a ver com características que são peculiares aos sintetizadores analógicos. Em primeiro lugar, no sintetizador analógico todo o processo de síntese, do início ao fim, acontece no domínio analógico, onde o sinal de áudio está lá na forma de tensão/corrente trafegando pelos circuitos – em outras palavras, o sinal é o próprio sinal (enquanto que num sintetizador digital o sinal na verdade é gerado e processado na forma de representação numérica – aproximada – do que deveria ser, e só se torna de fato um sinal eletrônico no final do processo, ao ser convertido no circuito do DAC). Além disto, por causa da maneira como são construídos os sintetizadores analógicos, com componentes “discretos”, isto é, individualizados, um instrumento sempre soa um pouquinho diferente de outro supostamente igual. Isto acontece porque os circuitos são compostos por uma grande quantidade de componentes, cada qual com suas tolerâncias de valores, que podem reagir diferentemente às variações de temperatura, de alimentação elétrica, e ao próprio sinal. É por isto que exemplares de um mesmo modelo soam muito parecidos, mas não rigorosamente iguais. Já num instrumento digital, onde os circuitos estão integrados em um ou poucos chips, essas diferenças são absolutamente minimizadas.
Muitos músicos não percebem ou não se importam com essas diferenças, e é por isto que os instrumentos digitais são mais usados, não apenas porque também produzem sonoridades interessantes, mas certamente porque oferecem um custo-benefício melhor, com recursos de memorização, maior polifonia, e, principalmente, porque são mais baratos. De qualquer forma, a realidade é que os analógicos ressurgiram e vêm ocupando um espaço significativo nos setups dos artistas.
Bem, a sonoridade analógica é muito legal, mas o retorno ao passado pode trazer algumas dificuldades, principalmente quando algumas coisas já avançaram e se consolidaram. Um dos aspectos que mais evoluíram com a tecnologia digital é a capacidade de se controlar coisas a distância. No caso dos instrumentos musicais, isto foi resolvido há muitos anos com a criação do padrão de comunicação MIDI (Musical Instrument Digital Interface).
Desenvolvido em conjunto por alguns engenheiros de empresas fabricantes de instrumentos, dentre eles o já citado Dave Smith, da Sequential Circuits, o MIDI surgiu oficialmente no evento NAMM de 1983, quando um Sequential Prophet 600 e um Roland Jupiter 6 foram interligados e funcionaram juntos via MIDI. A partir de então, uma nova onda atingiu o cenário musical. O controle através do protocolo MIDI viabilizou o uso dos computadores na música, trazendo grandes mudanças nos processos de composição, arranjo e performance. Sua eficiência é inegável, já que depois de mais de 30 anos ainda está aí em pleno uso, apesar de ser um protocolo baseado em 8 bits e trafegar a uma velocidade “ridícula” de 31.25 kbps! O fato é que a indústria musical hoje continua assentada nessa tecnologia, com bilhões de equipamentos no mundo inteiro se comunicando via MIDI.
Há mais de três décadas, portanto, nos acostumamos a usar o MIDI em nossos sistemas musicais. De lá para cá, surgiram os equipamentos controladores, com teclado ou não, que permitem ao músico acionar seus instrumentos musicais, equipamentos de áudio e softwares. Há alguns anos, o MIDI também foi incorporado ao protocolo USB, que passou a ser o tipo de conexão principal em vários equipamentos, facilitando a interligação com os computadores.
O problema é que os sintetizadores analógicos da era pré-MIDI, e também a maioria dos modulares analógicos modernos, não foram projetados para isto. Na verdade, o processo de controle nos synths analógicos é outro, bem diferente, e é esta questão que vamos abordar aqui.
Sintetizadores analógicos modulares
Embora as primeiras pesquisas de síntese sonora tenham começado há mais de cem anos, a produção comercial de sintetizadores só deslanchou de verdade há cerca de 50 anos, quando os módulos de síntese passaram a implementar um conceito de controle por tensão (voltage control). Isto facilitou bastante o processo e, sobretudo, permitiu a interligação dos módulos, uma vez que suas entradas e saídas operavam com sinais de tensão elétrica (“voltagem”).
O aprimoramento do sintetizador e sua consequente viabilização comercial teve como principal protagonista o engenheiro norte-americano Robert A. Moog, que no início da década de 1960 construía e vendia teremins e outros aparelhos de áudio. Com a colaboração de alguns compositores de vanguarda, Moog começou a desenvolver circuitos eletrônicos para síntese e modificação sonora, e para controlar o funcionamento desses circuitos usava sinais externos de tensão, de maneira que podia aplicar o sinal da saída de um módulo à entrada de controle de outro, tornando o processo muito mais interessante. É bom destacar que na ocasião eles não cogitavam o uso de teclados para acionar o sintetizador, que mais parecia um amontoado de equipamentos de bancada de laboratório de eletrônica do que um instrumento. Baseando-se no conceito de controle por tensão, Moog começou a desenvolver um conjunto de módulos que podiam ser interligados de maneiras diferentes, permitindo uma variedade de resultados distintos. Esses módulos são usados até hoje em sistemas analógicos para síntese sonora, e os essenciais são descritos a seguir.
(Moog não foi o único a pesquisar este tipo de controle; Don Buchla, também norte-americano, desenvolveu na mesma época módulos controlados por tensão. Possivelmente, outras pessoas, inclusive fora dos EUA, também tenham trabalhado nesse sentido, mas foi Moog o primeiro a obter sucesso, técnica e comercialmente.)
Oscilador controlado por tensão (voltage-controlled oscillator – VCO)
É o elemento que gera o sinal inicial para ser usado em todo o processo. A frequência do sinal do oscilador é proporcional à tensão aplicada à sua entrada de controle (pitch CV). Moog e outros fabricantes adotaram o padrão “1 volt/oitava”, pelo qual o aumento de 1 volt na tensão de controle faz dobrar a frequência do oscilador (ou seja, subir uma oitava).
Filtro controlado por tensão (voltage-controlled filter – VCF)
É o elemento que altera a composição harmônica (timbre) do sinal, suprimindo harmônicos e/ou realçando por ressonância determinada região do espectro. O VCF geralmente é acoplado à saída do VCO, e o tipo mais usual é o filtro passa-baixas (low-pass; LP), que corta as frequências acima de determinado ponto do espectro, mas há também os tipos passa-altas (high-pass; HP) e passa-banda (band-pass; BP). Para ajustar a frequência de atuação do filtro (cutoff frequency), é aplicada uma tensão CV na entrada de controle do módulo. Da mesma maneira que no VCO, Moog também adotou o padrão “1 volt/oitava”, de maneira que cada aumento de 1 volt na entrada de controle faz dobrar (subir uma oitava) a frequência de corte do filtro.
Amplificador controlado por tensão (voltage-controlled amplifier – VCA)
É o elemento que altera a amplitude (intensidade) do sinal, e que permite manipular o comportamento dinâmico do volume. O VCA em geral é acoplado à saída do VCF, e para controlar a amplitude do sinal de áudio é aplicada uma tensão CV na entrada de controle do VCA, que geralmente vem do módulo gerador de envelope (EG). Dependendo do VCA, a resposta do ganho à variação da tensão de controle pode ser linear ou exponencial.
Gerador de envelope (envelope generator – EG)
É um circuito que produz um sinal de tensão de controle com características variáveis, que podem ser ajustadas pelo músico. Seu funcionamento é disparado a partir de um sinal de tensão chamado de gate ou trigger, produzido ao se acionar uma nota (no teclado). O sinal gerado pelo EG pode ser aplicado no VCA, no VCF ou mesmo no VCO. A maioria dos EGs possui quatro estágios ou etapas: attack (ataque; que determina o transiente inicial do parâmetro controlado), decay (decaimento; define o tempo que leva até a sustentação), sustain (o nível em que o parâmetro que está sendo controlado ficará estabilizado enquanto a nota estiver soando), e release (o tempo que o parâmetro leva para voltar ao estado inicial depois que cessa a execução da nota).
LFO (low frequency oscillator)
É outro circuito oscilador, só que sua faixa de frequências geralmente está abaixo do espectro do áudio (daí seu nome: oscilador de baixa frequência), porque sua função não é gerar sons, mas atuar como modulador de outros parâmetros. Quando aplicado à entrada do oscilador principal, o sinal do LFO produz modulação de frequência (FM), resultando no efeito de vibrato. O sinal do LFO também pode ser aplicado na entrada de controle do VCA para produzir modulação de amplitude (AM), e também na entrada de controle do filtro, modulando a sua frequência de corte e produzindo efeitos bastante interessantes. Moog usava para o LFO o mesmo circuito do VCO, já que este também podia gerar frequências muito baixas (sub-áudio), controlado pelo mesmo tipo CV (1 volt/oitava).
Além dos módulos básicos mencionados acima, existem ainda outros que também podem ser encontrados em sintetizadores analógicos, como unidade de reverberação, ring modulator e mixers de sinal, etc.
Executando notas nos sintetizadores analógicos
Como já vimos, o primeiro elemento no processo de síntese é o oscilador. Para executar as notas musicais no sintetizador analógico geralmente é usado um teclado ou então um sequenciador. Em ambos os casos, para efetuar o acionamento de cada nota são gerados dois sinais de tensão: o gate, um pulso de tensão que determina o início e o fim da nota, e o CV (control voltage), um valor de tensão que determina a altura (afinação) da nota.
Gate
O sinal de disparo da nota – chamado de gate – é um pulso cuja duração equivale à duração da nota, isto é, o pulso inicia quando se pressiona a nota no teclado (note on) e cessa quando a tecla é solta (note off). O sinal do gate geralmente é injetado ao gerador de envelope (EG), disparando o primeiro estágio (attack), que será sucedido pelos estágios de decay e sustain, conforme os ajustes de tempo no EG. Quando o sinal de gate termina, cessa o estágio de sustain e então acontece o último estágio, release).
As características do sinal de gate podem variar conforme o fabricante do sintetizador, sendo que a maioria usa um pulso positivo, com intensidade maior do que +5 Vcc. A tabela a seguir mostra as implementações mais usadas para o gate, sendo que alguns modelos podem usar variações destas. Por exemplo, o Yamaha CS-15 trabalha com gate invertido, em que no estado de repouso a tensão tem que estar acima de +3V (podendo chegar até +15V), e o acionamento (note on) ocorre quando o pulso cai a 0V (podendo chegar até -10V). Há ainda alguns synths que usam apenas a transição do gate, num tipo de acionamento chamado de switched-trigger (S-trig).
CV (control voltage)
O sinal que controla a altura (pitch) da nota é uma tensão fixa, aplicada à entrada de controle do módulo do oscilador (VCO ou LFO), e o valor desta tensão é que determina a frequência do oscilador. O padrão mais utilizado para isto é a escala de “1 volt/oitava”, adotado nos sintetizadores analógicos Moog, ARP, Sequential, Oberheim, Roland e outros.
Neste padrão de escala, cada variação de 1 volt no CV faz com que o oscilador dobre a sua frequência, subindo uma oitava. Portanto, a distância de um intervalo de semitom é sempre de 83,3 mV (milésimos de volt). Um teclado com extensão de cinco oitavas, por exemplo, pode produzir sinais de CV desde 0 até +5V. A precisão e a estabilidade do sinal de CV são fatores fundamentais para que o sintetizador funcione com uma boa afinação das notas.
No oscilador, o sinal de CV vindo do teclado pode ser somado com outro sinal de CV vindo de outro módulo, como, por exemplo, um sinal oscilante de um LFO para produzir vibrato, ou um sinal fixo para efetuar transposição (pitchbend).
Existe também outro padrão de escala, adotado nos sintetizadores analógicos Yamaha CS, Korg MS e alguns modelos de outros fabricantes, que utiliza uma relação linear de Hertz/volts, de maneira que para dobrar a frequência do oscilador é necessário dobrar a tensão de controle (CV). Nesta escala, a primeira oitava é controlada por tensões que vão de 125 mV a 250 mV, a segunda oitava de 250 mV a 1V, a terceira de 1V a 2V, e assim por diante. Como se pode perceber, nesta escala o intervalo de tensão entre semitons não é constante.
ADSR
O sinal produzido pelo EG (gerador de envelope), também conhecido por ADSR, geralmente contém quatro estágios e é disparado quando o módulo do EG recebe o pulso do gate (instante em que a tecla é acionada – note on). Nesse momento, o EG produz o primeiro estágio (attack), em que a tensão sai de 0V e vai subindo gradualmente até chegar no nível máximo (+5V na maioria dos sintetizadores); o tempo para atingir o máximo depende do ajuste de attack. Ao atingir o máximo, o EG entra no segundo estágio (decay), em que a tensão sai de +5V e vai caindo gradualmente até chegar no nível de sustain; o intervalo de tempo para isto depende dos ajustes do nível de sustain e do tempo de decay. O EG permanece no estágio de sustain enquanto a tecla continuar pressionada, e quando ela é solta (note off), o pulso do gate volta para o estado de repouso, acionando então no EG o último estágio (release), em que a tensão sai do nível de sustain e vai caindo gradualmente até chegar a zero, o que depende do ajuste efetuado para o tempo de release.
Como já dissemos, o sinal de tensão gerado pelo EG pode ser aplicado em qualquer módulo. O mais comum é usá-lo na entrada de controle do VCA, para criar uma variação de amplitude no som que permita caracterizá-lo como um som percussivo ou lento, por exemplo. O EG também é muito usado para controlar o comportamento do VCF, criando variações dinâmicas no timbre obtidas com o ajuste da frequência de corte do filtro por meio do sinal de tensão que sai do EG. Em alguns sintetizadores existe também uma saída invertida do envelope ADSR, que possibilita controlar o VCF “ao contrário” por meio do EG. O sinal ADSR também pode ser injetado no VCO, adicionado ao CV que vem do teclado, o que permite produzir transientes interessantes de pitch, por exemplo.
(*) Publicado originalmente na revista online Teclas & Afins em abril de 2016