Implementação
por Miguel Ratton*
No artigo anterior vimos que para executar uma nota em um sintetizador analógico é preciso enviar um sinal de tensão CV (control voltage) para o oscilador, determinando a frequência que ele deve produzir, e também um sinal de gate para o gerador de envelope (EG), determinando o início da execução da nota. Nos instrumentos analógicos dotados de teclado, estes sinais são gerados no próprio teclado, mas nos sintetizadores modulares, do tipo Eurorack e outros, é preciso gerar estes sinais externamente.
Com uma infinidade de modelos de teclados controladores MIDI disponíveis no mercado, nada mais lógico do que aproveitá-los para controlar também os sintetizadores analógicos. Mas como esses teclados “falam” digital e os synths “falam” analógico, é preciso então efetuar uma “tradução” dos sinais de um para o outro. É para isto que existem os conversores MIDI/CV.
Convertendo MIDI para CV e gate
Um conversor MIDI/CV é um dispositivo inteligente que recebe as mensagens MIDI vindas de um teclado controlador ou de um computador, processa essas mensagens e então gera os sinais apropriados de tensão de controle (CV) e de gate para acionar as notas no sintetizador analógico. Esses dispositivos possuem processamento interno e recursos de comunicação serial para poderem receber as mensagens MIDI vindas de um teclado e eventualmente também as mensagens MIDI vindas de um computador via USB. O microprocessador interno interpreta as mensagens e controla um conversor digital/analógico (D/A) que por sua vez gera o sinal de tensão CV correspondente à nota musical recebida via MIDI. Paralelamente, o microprocessador também gera o pulso de gate, que é conformado por um circuito analógico para se adequar aos critérios de polaridade e nível aceitos pelo sintetizador analógico.
Os conversores MIDI/CV mais simples geram apenas um sinal de CV e um sinal de gate, operando assim em modo monofônico. Ou seja, mesmo que sejam recebidas várias notas simultâneas do teclado MIDI, o conversor só é capaz de acionar uma nota de cada vez no sintetizador analógico – o que não chega a ser um problema, já que muitos dos sintetizadores analógicos também são monofônicos. Assim, quando recebe ao mesmo tempo várias notas do teclado (ex: um acorde), o conversor “escolhe” uma delas e gera os respectivos sinais de CV e gate. Geralmente a escolha recai na última nota que foi tocada no teclado (last-note priority), mas alguns conversores permitem programar o critério de escolha.
Já os conversores MIDI/CV polifônicos possuem várias saídas de sinal de CV e de gate, porém a polifonia também é limitada. Por exemplo, um conversor com quatro saídas de CV/gate tem que escolher quatro dentre as várias notas recebidas via MIDI para gerar os sinais para o sintetizador analógico. Isto pode ser feito usando o mesmo critério já mencionado, isto é, escolhendo as últimas quatro notas recebidas via MIDI. Alguns desses conversores polifônicos também podem operar em modo multicanal, de maneira que notas recebidas em canais MIDI diferentes são enviadas para saídas diferentes de CV/gate. Por exemplo, as notas do canal MIDI 1 vão para CV1/gate1, as notas do canal MIDI 2 vão para CV2/gate2, etc. Isto é bem interessante quando se quer controlar vários sintetizadores analógicos monofônicos.
Existem dois requisitos muito importantes para o bom desempenho de um conversor de MIDI/CV. O primeiro diz respeito à precisão e à estabilidade da tensão de controle, que é o que vai permitir a execução afinada do sintetizador. Por exemplo, em um sintetizador cujo oscilador opera com a escala de 1 volt/oitava, a diferença da tensão CV entre cada semitom é de 83,3 mV, e nesse caso um desvio de 10 mV na tensão de CV, por exemplo, significa um desvio de 12 centésimos de semitom, que não chega a ser tão perceptível. Também é importante que o sinal de tensão CV tenha estabilidade, isto é, não se altere no decorrer da nota. Para gerar os sinais analógicos, os conversores MIDI/CV utilizam chips de conversão D/A, e a precisão do sinal de tensão na saída depende, basicamente, da resolução em bits na conversão. Os chips mais antigos operam em 10 bits, o que dá uma precisão teórica da ordem de 6 centésimos de semitom. Já os chips de conversão de 12 bits permitem chegar a uma precisão bem melhor, da ordem de 1,5 centésimos de semitom.
O outro requisito se refere à velocidade de resposta do conversor, isto é, o tempo que ele precisa para gerar os sinais analógicos após receber a mensagem MIDI. Atrasos acima de cerca de 4 ms (milésimos de segundo) começam a prejudicar a execução musical, produzindo uma sensação desconfortável para o músico. Então, a operação do conversor precisa ser rápida o suficiente para que ele possa colocar os sinais analógicos na saída em tempo hábil.
A faixa de notas que pode ser controlada pelo conversor é definida pela extensão da faixa de tensão de CV que ele pode gerar. Por exemplo, um conversor que pode gerar tensões de 0 a 5 V consegue cobrir até cinco oitavas no oscilador de um sintetizador analógico (considerando a escala de 1 volt/oitava). Existem conversores capazes de cobrir dez oitavas (0 a 10V), mas, obviamente, a aplicabilidade disto vai depender da faixa de CV que é aceita pelo oscilador do sintetizador que está sendo controlado.
Muitos dos conversores de MIDI/CV também interpretam outros controles MIDI, tais como pitchbend, modulation, volume, e até a intensidade das notas (key velocity). Em alguns deles, o controle de pitchbend é incorporado diretamente ao sinal de CV que vai para o oscilador, de maneira que ao se tocar uma nota e mover junto a alavanca de pitchbend no teclado MIDI, o conversor gera a tensão de CV daquela nota e adiciona a este sinal o valor de tensão correspondente à posição do pitchbend, produzindo no sintetizador analógico um resultado similar ao que acontece em um sintetizador moderno controlado via MIDI. Em outros modelos, o controle MIDI (pitchbend, modulation, etc) pode ser direcionado para uma outra saída de CV, diferente daquela que gera o sinal de controle de notas, permitindo ao músico entrar com esse segundo sinal no módulo que desejar do seu sintetizador analógico. Por exemplo, se o controle de modulation é direcionado ao sinal CV2, este poderá ser injetado na entrada de controle do filtro, de maneira que o músico possa ajustar a frequência de corte usando a alavanca de modulation no teclado.
Apesar de haver uma grande variedade de sintetizadores analógicos modulares sendo produzidos atualmente em todo o mundo, não são muitos os modelos de conversores de MIDI/CV disponíveis, e cada um deles conta com recursos diferentes, sendo que a maioria oferece só uma saída de CV, para controle da nota. A seguir, apresentaremos um modelo desenvolvido no Brasil e que, apesar de simples, reúne ótima precisão de sinal, rapidez de resposta e razoável flexibilidade de recursos.
Uma alternativa brasileira
Em contato com alguns músicos que vêm usando efetivamente sintetizadores analógicos, percebi a necessidade que eles têm de um conversor de MIDI/CV, não só para controlar os sintetizadores por meio de teclados MIDI modernos mas também para controlá-los a partir do computador e assim também poderem sequenciar em software MIDI a execução dos analógicos. Como eu já tinha desenvolvido a placa de processamento “MIDI.1”, que pode ser usada como plataforma para diversas aplicações, tais como superfície de controle e mesmo um sintetizador híbrido, resolvi então implementar o conversor sobre esta mesma plataforma.
E assim surgiu o MIDI2CV, cujo núcleo é a placa MIDI.1, que contém um microcontrolador PIC e é equipada com entrada e saída MIDI e também conexão USB para computador. O circuito de conversão do MIDI2CV fica em uma segunda placa, onde estão chips conversores D/A de 12 bits e demais componentes analógicos.
O MIDI2CV é um conversor duofônico, com duas saídas de CV e duas saídas de gate, e pode ser configurado para operar em dois modos diferentes. No modo “2 vozes”, ele recebe as notas pelo canal MIDI 1 em “split”, gerando em CV1/Gate1 o sinal das notas MIDI recebidas acima do Dó 3 (inclusive) e em CV2/Gate2 o sinal das notas MIDI recebidas abaixo do Dó 3. No modo “2 canais”, ele gera em CV1/Gate1 o sinal das notas recebidas pelo canal MIDI 1, e em CV2/Gate2 gera o sinal das notas recebidas pelo canal MIDI 2. Isto permite trabalhar em várias situações diferentes (veja os exemplos ilustrados).
Existe ainda a possibilidade de se controlar dois sintetizadores a partir das mesmas saídas de CV/gate, já que CV1, CV2, Gate1 e Gate2 são todas duplicadas. Assim dá para tocar simultaneamente dois sintetizadores em uníssono ou transpostos.
As saídas CV1 e CV2 podem operar, independentemente, em escala de 1 V/oitava ou em escala de Hz/V, cobrindo 5 oitavas em ambos os casos. As saídas Gate1 e Gate2 também podem ser configuradas independentemente para atuar como pulso positivo (0V → +8V) ou invertido (+8V → 0V). Desta forma, é possível, por exemplo, controlar um Moog (1 V/oit) usando o canal MIDI 1 e um Yamaha CS10 (Hz/V) usando o canal MIDI 2.
A precisão dos sinais de CV é de 12 bits, com erro (medido) menor do que 5 mV (na escala de 1 V/oit). O MIDI2CV foi testado com diferentes sintetizadores analógicos, incluindo Moog e Yamaha, e também com o sistema modular produzido por Vinicius Brazil, e em todos os casos demonstrou ótimo desempenho de precisão e estabilidade. O tempo de resposta entre o recebimento da mensagem de MIDI e a saída do sinal de CV é inferior a 1,5 ms.
O MIDI2CV permite configurar a saída CV2 para ser um sinal de controle em vez de sinal de nota. Neste caso, é possível escolher entre um sinal correspondente ao controle MIDI de modulation ou um sinal correspondente à intensidade (key velocity) da nota MIDI. Com este recurso o músico pode, por exemplo, usar atuar em um sintetizador analógico aproveitndo a sensibilidade de toque do teclado controlador, tocando as notas por meio de CV1 conectado ao oscilador (VCO) e controlando a intensidade das notas por meio de CV2 conectado à entrada de controle do amplificador (VCA). Outra possibilidade é conectar CV2 à entrada de controle do filtro (VCF), por exemplo, para ajustar a frequência de corte por meio alavanca de modulation. Os diferentes modos de operação podem ser configurados por meio de uma microchave no painel, e não é preciso desligar o conversor para efetuar a configuração.
Além de ser controlado a partir de um sinal de MIDI, o MIDI2CV pode operar a partir de um computador, conectado via USB, de maneira que os sintetizadores analógicos possam ser controlados por um software sequenciador. Quando está conectado ao computador, o MIDI2CV opera também como interface de MIDI, enviando também pela sua saída MIDI Out as mensagens MIDI que vêm do computador, e passando para o computador as mensagens MIDI recebidas na entrada MIDI In. Funciona com Windows e Mac, usando o driver nativo de ambos os sistemas operacionais (não é preciso instalar driver).
O projeto do MIDI2CV foi concebido para que ele possa ser implementado como unidade autônoma (com fonte de alimentação externa) ou então montado em eurorack, incorporado ao gabinete de um sintetizador modular. Quanto ao preço…. a estimativa é que fique igual ou inferior aos modelos existentes.
(*) Publicado originalmente na revista online Teclas & Afins em maio de 2016